Literatura para Sobrevivência no Ensino Médio Utilizando o livro Ana e a margem do rio de Godofredo de Oliveira Neto




PROJETO “LITERATURA PARA SOBREVIVÊNCIA” NO ENSINO MÉDIO : O IDEAL E O POSSÍVEL EM UM MEIO HOSTIL

Profª Camila Ferreira da Silva




"A primeira finalidade do ensino foi formulada por Montaigne: mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia". (MORIN, 2000)

"A função da literatura não é propriamente comunicar. Ela vai abrir os olhos do leitor, alertando que o mundo que ele não existe, foi a criação de uma época, de uma ideologia, de um credo. Existem outros mundos que a imaginação constrói diariamente nos sonhos, nos pesadelos e nos pensamentos vadios e errantes." (NETO, Entrevista a Marcos Vasques - Especial para a Coluna Anexo de A Notícia, Jornal de Blumenau em SC em 27/11/2003)


Resumo

Necessitamos, como educadores, "bolir" com o nosso imaginário e com o dos alunos, como alternativa única de trabalhar num mundo em constante transformação e nos desacomodarmos, ousarmos fazer diferente. Acreditando que a leitura pode ser uma atividade deflagradora da produção textual e do aumento da bagagem cultural, buscamos alternativas de trabalho para essas aulas, transformando o ato passivo frente ao texto literário em atividade participativa da criação. Esta comunicação pretende, pois, compartilhar uma prática realizada com alunos da 2a Etapa do Ensino Médio: a criação de histórias tendo como roteiro suas próprias vidas e com isso tendo a chance de refletirem sobre elas e buscarem alternativas e caminhos para transformarem suas vidas e elevarem sua autoestima.

PALAVRAS-CHAVE: literatura ; leitura ;cinema ;prazer


1  - Introdução


Seja qual for as metodologias empregadas no processo de ensinoaprendizagem da Língua Portuguesa e da Literatura, o professor, de qualquer série, da escola pública de periferia, deve guiar seus procedimentos levando em consideração duas indagações: a) quais competências e habilidades devem ser desenvolvidas visando à formação e desenvolvimento dos alunos?; b) e nessa perspectiva, como deve agir na lida com o conhecimento, numa sociedade em que a mudança é a única característica permanente ? c) Como fazê-los se interessar por leitura quando em seu meio o acesso a bons livros e  recursos  didáticos é escasso ? A partir dessas indagações, buscou-se encontrar uma alternativa de trabalho para aprimorar a Literatura no Ensino Médio, etapa em que se observa certo distanciamento entre a leitura de obras literárias e os adolescentes, na tentativa de transformar o ideal em real. E é  essa alternativa que é descrita e fundamentada neste artigo, no qual se expõem diretrizes teóricas que orientam o projeto em questão, além da descrição da metodologia e dos resultados alcançados.


2  - Leitura na escola: desafio constante


De acordo com Paulo Freire (1997), a leitura é uma habilidade humana que precede a escrita - só pode ser escrito o mundo que foi anteriormente lido - e está intimamente relacionada com o sucesso acadêmico do ser que aprende e, contrariamente, à evasão escolar SILVA (2002). Para KLEIMAN (2001), a palavra é patrimônio da cultura letrada; assim, é preciso garantir ao cidadão a participação nessa sociedade letrada. Ler, assim sendo, não é uma atitude passiva, não se reduz a uma simples decodificação de sinais gráficos, mas pressupõe uma atividade de reconstrução de sentidos. Ela não é um ato solitário porque envolve o diálogo com o interlocutor, que pode ser com diversos escritores. No momento que fazemos o cruzamento de um texto com outro, que introduzimos questões, os interlocutores ampliam-se. Nesse sentido, a leitura é sempre escritura, são processos conjugados. O texto literário apresenta sempre dupla escritura-leitura, ele é uma rede de conexões, atravessado por várias formações discursivas. Leitura e escrita são processos que se completam e complementam.
Cientes de que o ensino da Língua Portuguesa e da Literatura não pode restringir-se à transmissão de regras gramaticais e de que a leitura pode ser uma atividade deflagradora da produção textual e do aumento da bagagem cultural, buscamos alternativas de trabalho para essas aulas dispondo de poucos recursos. Dessa forma, é fundamental que o professor – e não só o de Língua e Literatura - aproprie-se de seu papel na formação de leitores. Precisa também ter na leitura fonte de aprimoramento e fruição, de forma que seu discurso não seja vazio, mas possa estabelecer condições para o prazer de ler em sua sala de aula. Ainda, dar abertura às diversas interpretações que a obra literária pode suscitar e tentar sempre aprender com elas, oferecendo aos alunos uma grande variedade e quantidade de livros, ensinando-os a fazer vinculação entre o lido e o vivido são alguns dos desafios do professor que se comprometa com a formação de alunos-leitores. Cabe destacar que o professor deve incentivar seus alunos não apenas a exercitarem o ato de ler, mas também motivá-los a se manifestar sobre aquilo que lêem. O ato passivo frente ao texto, literário ou não, ou à obra de arte em geral transforma-se em atividade participativa da criação. Necessitamos, como educadores, “bolir” com o nosso imaginário e com o dos alunos, como alternativa única de trabalhar num mundo em constante transformação e nos desacomodarmos, ousarmos fazer diferente.

2   - O Projeto “Literatura Para Sobrevivência”

2.1   Como Nasceu o Projeto

Durante meu primeiro ano como professora das turmas de segunda etapa do primeiro ciclo do Ensino Médio do Colégio Estadual Gustavo Barroso , em Belford Roxo, tinha como maior desafio ensinar meus alunos a apreciarem a leitura e se envolverem-se na construção de histórias. Foram lidas obras literárias específicas com foco em autores brasileiros, de Machado de Assis , Erico Verissimo , Luis Fernando Verissimo, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Meu colégio não tem muitos recursos, a sala de informática destinada aos alunos continha apenas quatro computadores, a maioria das vezes apresentando problemas e sua manutenção exigiam longo tempo de espera para a chegada de um técnico e a biblioteca não pode ser considerada o ponto alto da escola pois não possui exemplares suficientes para todos. E para agravar o quadro, todos meus alunos são oriundos de familias de baixa renda, muitos dependendo da ajuda financeira do Programa Bolsa-Família, habitantes de um bairro periférico considerado um dos mais violentos do Rio de Janeiro. Como poderia então cativar alunos assim, cuja luta pela sobrevivência deles mesmos e suas famílias é um ato diário e constante ? Quase por acaso, levada ao desespero em um dia em que minha turma se mostrava indócil e refratária a qualquer apelo para se concentrarem na aula, comecei a ler praticamente para mim


mesma, no meio da algazarra da sala de aula, um trecho do conto “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa. À medida que lia ia me emocionando e a turma aos poucos foi prestando atenção em mim. E se emocionando com essa leitura chegando alguns alunos a chorar quando cheguei na parte que o filho dizia “A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.” E então estabeleceu-se pela primeira vez em dois meses em que estava como sua professora uma empatia entre mim e a turma pois contei-lhes que estava chorando ao ler esse trecho porque me lembrara do meu pai, que havia falecido há pouco tempo. Ao relatar esse fato, eles começaram a tentar me consolar contando os dramas familiares de cada um em relação a seus próprios pais ausentes ou com sérios problemas. E surpreendentemente, pediram que eu continuasse a ler mais livros como aquele, que contassem histórias da mesma forma que eu fizera nesse dia : lendo para eles oralmente e fornecendo minhas impressões sobre a história e seu autor, dando sinais que preferiam uma leitura menos passiva e mais participativa, envolvendo discussões e debates em grupo, quase como se fosse uma saudável conversa e troca de ideias entre amigos na mesa de um bar. Foi assim que nasceu o Projeto Literatura Para Sobrevivência”, uma forma inovadora de ensinar alunos advindos de um meio inóspito, violento e muitas vezes hostil e pouco receptivo a arte e a cultura, devido à dura luta diária para sua própria sobrevivência, a enxergarem a beleza de um texto, encorajando-os a narrarem suas próprias vidas, levando-os com esse exercício a ampliarem seus horizontes e construírem um futuro mais promissor para si e suas famílias.

2.2 Os Objetivos


Ao longo do desenvolvimento do projeto, objetivos são modificados e/ou acrescentados, de acordo com a diversidade do trabalho das turmas, suas necessidades e parcerias são estabelecidas. Em geral, pode-se destacar os seguintes objetivos: 1) suscitar nos estudantes o gosto e o desejo pela leitura; 2) tomar conhecimento de dados sobre a vida e obras do autor escolhido; 3) conhecer e realizar análises de obras do autor em questão, fazendo análises da linguagem, reflexões metalingüísticas, tipos de diálogos, modernidade estilística, clichês, potencial semântico dos vocábulos, entre outros; 4) reconhecer a língua e suas variantes como forma de expressão e identidade dos grupos sociais e da época em foco; 5) conhecer o pano de


fundo social e político do Brasil através das obras estudadas e sua conseqüência na expressão literária; 6) proporcionar um espaço no qual a criação e a imaginação perpassem pela leitura e pelo texto a ser produzido ampliar horizontes e diversificar conhecimentos, através da leitura de diferentes gêneros discursivos; 7) sensibilizar e estimular o aluno para as artes literárias; 8) respeitar à autonomia do trabalho no processo de leitura e produção, entendendo dúvidas, erros e acertos como etapas de um processo de maturação e sedimentação do trabalho.


2.3   As Etapas


Para atingir as metas, a metodologia empregada segue uma linha de ação cujas etapas podem ser enumeradas da seguinte maneira:

1.       Lançamento do Projeto: Em abril de 2017, os alunos da 2ª etapa do Ensino Médio foram reunidos no Auditório da escola para, oficialmente, marcarmos o lançamento do Projeto “Literatura Para Sobrevivência”.
2.       Criação de um Organograma para Discussão de Obras de Autores : A cada mês seriam lidas oralmente e debatidas em salas de aula dois autores brasileiros e os alunos escreveriam críticas sobre as obras;
3.       Conhecendo o autor: Sob a orientação da professora, os alunos tomaram conhecimento da vida e obra dos autores escolhidos para aquele mês. Seriam apresentados filmes e vídeos sobre a obra num determinado autor e os alunos discutiriam em sala sobre o que tinham assistido e expressariam suas opiniões por escrito.;
4.       Correções das Redações : Com base nos erros ortográficos e gramaticais encontrados nas redações, a correção das mesmas seria feita numa aula expositiva à parte num dia previamente combinado com os alunos a cada semana;
5.       Criação Mensal de Uma Oficina Literária : Uma vez por mês os alunos terima um dia específico para juntos aprenderem a desenvolver um determinado gênero textual : literatura de cordel, reportagens, crônicas,etc. Trariam recortes de jornais, criariam murais com os materiais disponíveis na escola, simulariam reportagens e entrevistas,


a professora convidaria profissionais e especialistas para debaterem com alunos suas vidas e escolhas profissionais, agendaria visitas a museus e bibliotecas visando a enriquecer e ampliar seus conhecimentos e vocabulário.
6.       Avaliação: os alunos passam a ser avaliados por sua produção textual em sala de aula, são estimulados a se autoavaliarem e buscarem melhorar a própria escrita por meio de consultas s livros e esquemas criados pela professora. Esses esquemas consistem em resumos que sempre se encontram à disposição dos alunos com os principais erros ortográficos e gramaticais frequentes na língua portuguesa que eles podem tirar cópias na xerox da escola ou a professora distribui cópias deles para os alunos levarem para casa e estudarem. Os livros didáticos distribuídos gratuitamente pelas escolas também são fontes de consulta. A nota é produto da soma de todas as redações criadas ao longo do mês.

3   Considerações Finais


Pensando em toda essa trajetória de dois anos da implantação do projeto “Literatura Para Sobrevivência” no Colégio Estadual Gustavo Barroso, tanto de ano a ano como ao longo de cada um, tenho buscado realmente incrementar e qualificar o estudo da Literatura com meus alunos, procurando apresentar a eles novos horizontes, através da palavra escrita, leitura e as imagens de diversos filmes. Esses aspectos são contemplados com propriedade no desenvolvimento das atividades envolvidas no projeto. Minhas expectativas iniciais, as possibilidades de trabalho, os conhecimentos construídos, habilidades e competências desenvolvidas vão, ano após ano, sendo superadas. O projeto tem comprovado até agora sua importância junto à comunidade escolar, bem como expectativas quanto aos seus resultados e, estando em sua segunda edição em 2018, comprovando que os objetivos são lançados, alcançados e, surpreendentemente, superados. Inicialmente, fatos como o aumento do fluxo de alunos e, conseqüentemente, da retirada de livros, tanto orientada quanto espontânea, e a leitura previamente realizada das obras indicadas para o projeto do ano seguinte, durante o período de férias escolares, são indícios de que a leitura deixou de ser um mero cumprimento de tarefas para se transformar em uma ação prazerosa, com sentido. Outro aspecto que merece destaque, considerando tratar-se de adolescentes, refere-se à identidade cultural brasileira. Ao


entrarem em contato com obras de autores diversos, de regiões e épocas diferentes das suas, os alunos estabelecem relações, refletindo sobre a língua e suas variantes, como forma de expressão e identidade dos grupos sociais e da época em foco. As oficinas realizadas ampliaram de diversas formas de conhecimento, utilizando-se da palavra e da imagem como ferramentas de criação de outro gênero textual (roteiros), que, por sua vez, também se transformam em objeto de leitura. Na execução das etapas finais do projeto (formação de equipes, ensaios, oficinas, entre outros), alunos tiveram oportunidades de adquirir e desenvolver habilidades e competências, as quais não seriam percebidas nem valorizadas em uma aula padronizada nos moldes antigos com cobrança de leituras fora da sala de aula e avaliação por meio de provas . Ao serem estimulados à produção de crônicas através da escrita em sala de aula, atingiu-se o ideal da produção textual na escola: escrever com significado. E, mais uma vez, a própria produção tornou-se fonte de fruição da leitura. Dessa forma, juntam-se os três pilares fundamentais do projeto - palavra escrita, leitura e imagem – e, assim, a literatura, literalmente, consegue ser uma “literatura para a sobrevivência”.

4. Referências Bibliográficas


FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

KLEIMAN, Angela. Oficina de leitura: teoria e prática. 8. ed. Campinas, São Paulo: Pontes, 2001.

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2000.

SILVA, Ezequiel Teodoro da. O Ato de ler: fundamentos psicológicos para uma nova pedagogia da leitura. São Paulo: Cortez, 2002.

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